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Considerações sobre o Vegetarianismo



O vegetarianismo é um assunto recorrente em minha vida desde a adolescência. Tentei adotá-lo aos 19 anos, mas não consegui manter. O apelo do meu corpo pela carne foi maior. Na época, a motivação para a dieta vegetariana era pouco transformadora. A ocidentalização da vida "natureba" estava apenas começando. Ser macrobiótico ou vegetariano era "legal". Eu também estava na busca pelas "verdades ocultas" da espiritualidade. Fui informada que precisaria abster-me da carne para que minha conexão com o mundo espiritual acontecesse. Então, a abstenção da carne foi uma decisão objetiva, sem convicção real. Era um sacrifício. E, como todo sacrifício, requer motivos muito fortes para ser mantido. Tinha pesadelos, nos quais sonhava estar comendo carne e, só então percebia o que tinha feito e sentia que tinha falhado. Acordava angustiada pelo "pecado" cometido e, ao mesmo tempo, desejosa pela carne do sonho. Cresci no campo, assistindo ao abate dos animais e participando de seu preparo. Meu irmão se trancava dentro de casa quando um animal seria sacrificado e chorava pelo seu abate. Pensava que ele era fraco e eu não queria ser. Queria dar orgulho aos meus avós e aprender a fazer o abate e o corte. Recordo de uma ocasião onde depenei e esquartejei cinco galinhas. Naquele dia senti que foi demais. Foi a primeira vez em que tive uma sensação "criminosa" em relação a isto. Mas, apesar de passar a evitar de participar dos abates, coloquei aquele sentimento de lado e tentei não pensar mais nisto. Lembro de uma ocasião onde uma galinha andava, seguida por seus pintinhos recém nascidos. Ela atravessou uma valeta de terra e um dos pintinhos ficou para trás. Eu quis ajudar o pintinho a atravessar. Quando me aproximei dele, a galinha, que não compreendeu meu gesto, me atacou enfurecida e perseguiu-me até que eu conseguisse entrar em casa e fechar a porta atrás de mim. Várias vezes, depois disto, a lembrança da galinha enfurecida, defendendo seus filhotinhos, voltou à minha mente ao longo dos anos. Aquele animal "irracional" e "sem capacidade de afeto" me pareceu importar-se bastante com sua prole. Tanto quanto uma mãe humana. Outro momento gravado em minha memória, refere-se à minha gata, esperando seu filhote. Ela teve quatro filhotes, depois de ter passado um dia e uma noite em trabalho de parto, com muito sofrimento. Na minha inexperiência como parteira de gatos, eu já ouvira a expressão "pariu como uma gata" quando uma mulher tinha um parto rápido. E aquele, definitivamente, não estava sendo rápido. Pela manhã, levei-a ao veterinário, e precisou de uma cesariana. Haviam dois natimortos e, dos dois vivos, um precisou ficar para uma cirurgia. Não sobreviveu. Levei a mãe gata e o filhote sobrevivente para casa. Ela insistiu em carregá-lo para dentro do roupeiro, no andar superior da casa. O filhote tentou descer as escadas e caiu, acabando por apresentar uma hérnia inguinal do tamanho de uma bolinha de ping- pongue. Precisei levá- lo ao veterinário. A mãe gata miava desesperada na garagem enquanto eu levava seu filhotinho embora, prometendo trazê- lo de volta. Ela permaneceu na garagem até eu voltar e seguiu miando desesperada porque eu voltei sozinha. O filhote não sobreviveu. Sua pequenas tetas estavam cheias de leite. Compadecida pelo desespero dela, encontrei uma gata com filhotes já maiores, cuja "dona" (minha tia) queria desfazer-se deles. Trouxe um dos filhotes para casa. Minha gata aceitou-o como dela e amamentou-o durante muito mais tempo do que o habitual. Ele já era um enorme gato adolescente, mas ela continuava oferecendo o seio pra que ele se aninhasse perto dela. Seu único filhote. Naquela cesariana ela precisou ser esterilizada e nunca mais pariu. Parecia que ela sabia que este seria seu único. Mesmo assim, apesar de não comer carne de gato ou outro animal doméstico, não me parecia errado comer carne de boi, porco ou galinha. Nunca precisei matar um animal com minhas próprias mãos. Não sei como teria sido se eu precisasse. Mesmo as galinhas e porcos que ajudei a destrinchar, já os recebia mortos. Apesar de ter assistido ao abate várias vezes.

Há alguns anos, tivemos um gato muito doente. Ele teve uma oclusão intestinal e precisou ser sacrificado. Optei por assistir à eutanásia, pois não queria que ele morresse sózinho, longe de sua família. Seus olhos profundos, suplicantes, me olhando enquanto a injeção letal era aplicada, não me saem da memória. Pensei ter tomado a decisão certa. Mas, será? Acho que deveria ter lhe dado uma chance de cirurgia. Mas, o veterinário disse que provavelmente era tarde e que ele estava sofrendo. Seria uma cirurgia bastante cara e eu me encontrava em má situação financeira. Mas, se tivesse que fazer novamente, não o faria. Acredito que esta lembrança será um dos meus demônios após a morte. Espero que sua alminha esteja lá na minha chegada e me perdoe pela minha parcial ignorância.

Mas, abandonar o hábito de comer carne, requer uma mudança interior muito mais complexa. Requer enxergar o ato de tirar uma vida, seja ela humana ou não, como algo errado. Sentir que isto é errado de uma forma muito profunda, a ponto de que o desejo pela carne desapareça completamente. E isto aconteceu muito recentemente. Tive um pesadelo muito transformador. Encontrava-me em um lugar estranho, fora da terra, com seres estranhos, extraterrestres. Eles se alimentavam de carne humana. Era uma espécie de abatedouro. Haviam partes de seres humanos em uma enorme vasilha e outras penduradas por ganchos. Entre estas partes, haviam algumas de criança. Imaginei que poderiam ser de um dos meus filhos. A dor da perda e do sofrimento pelo qual poderiam ter passado, me acordou. Entre soluços tentei me acalmar e me conscientizar de que havia sido apenas um pesadelo. Lembrei-me da galinha e da gata. Compreendi, profundamente, o sentimento delas. Compreendi que a dor de uma mãe pela perda ou pelo sofrimento de um filho, deve ser a mesma, seja ela humana, ou não. Minha dor foi tamanha, que não consegui falar sobre o meu sonho por vários dias. Ao ver os extraterrestres do meu pesadelo como seres cruéis e sanguinários, passei a ver a nós, seres humanos, como os mesmos cruéis e sanguinários. Como podemos pretender evoluir e nos considerarmos racionais, pacíficos, amorosos e civilizados, se achamos natural tirar a vida de tantos seres vivos todos os dias. Chegamos a matar mães grávidas e comer seus fetos. Tudo porque consideramos que são inferiores a nós e inferimos que não têm sentimentos como os nossos. Autorizamo-nos a assassiná-los, dizendo que eles não têm consciência e, portanto, se os matarmos rapidamente, não geraremos sofrimento. Mas, quem convive com os animais, sabe que isto não é verdade. Eles são capazes de amar e o amor deles é muito mais puro do que o nosso. O amor deles é fiel e duradouro. Basta ver as história da galinha e da gata. As tantas histórias de animais de estimação que esperam por seus "donos" por uma vida inteira ou passam a visitar seus túmulos após a sua morte. Lembro-me que os porcos, no sitio do meu avô, agitavam-se e gritavam desde cedo, na manhã do abate. Pareciam estar plenamente conscientes do que iria acontecer. Nunca assiti ao abate das ovelhas, mas, segundo me informei, elas ficam quietinhas, com lágrimas em seus olhos durante o abate. Resignam-se à sua fragilidade. Talvez os animais sofram até mais, pois eles têm algo que nós não temos, ou perdemos: o sexto-sentido. Eles sabem que algo irá acontecer, bem antes de nós. E disto, qualquer um que conviva com eles, sabe e não precisa de maiores provas.

Não vejo a morte como algo cruel. É o destino de todos nós. Mas, acredito que a decisão sobre ela não é nossa. O que não consigo tolerar é a idéia de sofrimento. Tanto o sofrimento do próprio ser vivo, como o sofrimento dos relacionados a ele pela perda. Compreendemos a morte pela velhice e até mesmo por uma doença. É doloroso, mas aceitamos a morte natural com o tempo. Mas a subtração abrupta de um ente querido, ainda mais se pensamos que possa ter sofrido, é uma dor eterna. E porque não o seria para os animais? Se eles são capazes de se afeiçoar aos seres humanos, a ponto de esperar pelo "dono" por toda sua vida, porque não sofreriam pelos seus pares?

Não sei o que eu faria se estivesse faminta numa floresta, sem encontrar outra coisa para comer. Não duvido que, no desespero, acabasse por matar um animal e comê-lo. A fome e o desespero nos levam a fazer coisas que normalmente não faríamos. Mas, nesta situação, pelo menos, a coisa seria mais justa. Eu teria que conseguir capturá-lo primeiro. O leão perde sua presa e precisa esperar outra chance em muitas ocasiões. No nosso mundo, a coisa não é nada justa. O destino do animal está traçado desde seu nascimento, ou até antes, de um modo nada justo. Temos outras alternativas para nos alimentarmos e, frequentemente comemos muito mais carne que o recomendado e supostamente necessário. A questão da necessidade da ingesta de carne para nossa sobrevivência é uma questão polêmica. A principio, exceto pela vitamina B12, podemos encontrar todos os nutrientes necessários à nossa subsistência nos vegetais. Se associarmos ovos e leite, deveríamos resolver totalmente a questão nutricional, desde que tenhamos um aporte bastante diversificado deles. Entretanto, recentemente, tomei conhecimento da vida sofrida, torturante, a que são submetidas as aves e animais leiteiros. Isto me levou a evitar,também, os produtos de origem animal em geral. Tomar um comprimidinho de vitamina B12 sintética, afim de poupar o sofrimento alheio, não me parece um problema. A alegação dos que são contrários à exclusão da carne da dieta, é de que somos animais onívoros e, portanto, deveríamos aceitar nossa condição de predadores. E, para corroborar esta afirmativa, trazem a evidencia de que temos dentes caninos. Se compararmos os nossos caninos com os dos animais carnívoros, estamos em franca desvantagem. Mesmo se compararmos aos caninos dos primatas. A diferença de tamanho é astronômica. Não poderíamos pensar que nossos caninos estão involuídos, justamente porque não necessitamos mais deles? E, se quisermos usar nossa anatomia como evidência, poderíamos nos focar, ao invés de nos nossos atróficos caninos, em nosso intestino, que é quatro vezes mais longo do que o intestino dos carnívoros, o que proporciona uma melhor absorção dos nutrientes com menor biodisponibilidade do que a proteína animal. Frequentemente encontro vegetarianos sem deficit nutricional algum e não vegetarianos cheios de deficiências nutricionais, inclusive de Vit B12, demonstrando que a ingesta de carne não nos garante uma boa saúde, mas sim, uma dieta balanceada. Nossa anatomia é de onívoros. Isto é, somos capazes de absorver proteína vegetal e proteína animal. O que quer dizer que PODEMOS ESCOLHER! E como seres inteligentes e possuidores de empatia, podemos escolher matar ou não. Nossa inteligencia nos permite, atualmente, produzir uma grande variedade de alimentos e não ter a NECESSIDADE da carne para sobreviver. E escolher matar, quando temos a alternativa de não fazê-lo, no meu entendimento, é barbarismo. Entendo que tomar a decisão errada, depois de estar consciente de qual é a certa, é estupidez, senão crime.

Também já ouvi a alegação de que, se consideramos errado tirar a vida de um animal, deveríamos usar o mesmo critério com os vegetais, uma vez que também são seres vivos. Realmente não sei se existe, ou não, alguma consciência nos vegetais. Mas, seria uma perversidade muito grande da natureza prover os vegetais com amor ao próximo , empatia e dor, e deixá- los sem nenhuma defesa contra os predadores. Eles não podem escolher esconder-se ou sair correndo. Mesmo aqueles que têm espinhos ou toxinas, não os usam voluntariamente contra seus agressores. Acredito que os vegetais existam com o propósito de servir de alimento e que não sentem dor, nem saudades dos seus brotos, nem sofram com a perda do vegetal ao seu lado. Baseado nessa visão da realidade, não há como comparar a vida dos vegetais e dos animais. Apesar disso, me choca quando vejo coisas presas ás árvores com pregos. Da mesma forma, acho que, que se resolvemos tirar um vegetal da natureza e confina-lo num vaso dentro de casa, longe do sol e da chuva, temos que prover-lhe, do contrário também estaremos causando sofrimento. Se algum dia eu descobrir que não preciso me alimentar para sobreviver , talvez eu mude, também, este ponto de vista. Entretanto, também entendo que a forma de ver esta questão é diferente entre as pessoas e que é preciso que cada um chegue a sua conclusão sozinho, pois, eu mesma, demorei muito pra ver as coisas desta maneira. Mas, acredito verdadeiramente, que, se a humanidade não se destruir primeiro, um dia, todos chegaremos a conclusão de que não podemos pregar o amor e a paz se, em nossos corações, ainda sentirmos que temos o direito de tirar uma vida, humana ou não, para nosso bem estar.

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